
A História de uma Pioneira - Lygia Pape
Em 23 de março de 1959, um ensaio apareceu no suplemento de domingo do Jornal do Brasil. Foi assinado por sete artistas brasileiros, entre eles Lygia Pape. Ele detalhou com precisão o que os artistas estavam pensando. Não que explicasse sua arte, exatamente. Mais como explicava suas razões para fazer arte e sua esperança do que sua arte poderia alcançar dentro da sociedade. Conhecido como Manifesto Neoconcreto, o ensaio anunciou um ponto de virada na história da arte brasileira. E, com o benefício da retrospectiva, podemos agora afirmar definitivamente que também marcou um ponto de virada na história da arte do século XX em geral. Ele expressou de forma concisa muitos dos problemas com as formas de arte não-objetiva que surgiram na primeira metade do século XX e propôs uma série de ideias sobre como superá-los para criar uma abordagem mais construtiva, aberta e universal à arte abstrata. De todos os artistas que assinaram o Manifesto Neoconcreto, Lygia Pape se tornou a mais influente. Seu método de trabalho simples, elegante e preciso resultou em um corpo de trabalho que continua a parecer fresco e inspirador hoje.
Expressão do Problema
Para quem não entende por que a arte abstrata existe, ou por que surgiu quando surgiu ou das maneiras que surgiu, o Brasil é um excelente ponto de referência. A ascensão da arte abstrata no Brasil ocorreu por razões bastante fáceis de entender. A história brasileira antes de 1945 é, em muitos aspectos, uma história de exploração, lutas pelo poder e controle autoritário. Quase toda a arte que os artistas brasileiros produziram antes de 1945 era figurativa, muito dela feita diretamente a serviço de agendas políticas. É fácil imaginar que, quando, em 1945, o país experimentou uma onda de reformas liberais que acompanhou o retorno ao governo democrático, o otimismo e a esperança estavam altos na mente dos artistas, que naturalmente acreditavam que finalmente teriam a liberdade de desenvolver uma verdadeira vanguarda brasileira. E assim como seus colegas europeus e americanos, essa nova liberdade se manifestou de forma bastante natural em um desejo de fazer arte que não tivesse narrativa política ou social, e nenhum contexto sentimental.
Faz todo sentido. Depois de ser forçado a pintar murais de generais a vida toda, você pode naturalmente querer explorar algo diferente, certo? Por gerações, os brasileiros perceberam a arte apenas como uma forma de manipular as pessoas. Mas os artistas recém-liberados do Brasil do final da década de 1940 conseguiram buscar novos tipos de arte que poderiam ser percebidos como totalmente neutros. A emergente vanguarda brasileira encontrou muita inspiração na onda de arte abstrata europeia que começou a ser exibida em seus museus. De particular interesse era a Arte Concreta. Nomeada em 1930 por Theo van Doesburg, a essência da Arte Concreta era criar obras de arte que não fizessem referência a nada além de si mesmas. A arte concreta evita sentimentalismo, lirismo e imagens da natureza, e tende a abraçar formas geométricas objetivas. Na opinião de muitos artistas brasileiros no final da década de 1940, a filosofia da Arte Concreta expressava perfeitamente o problema: que sua arte sempre foi relegada à expressão de agendas externas. Através da Arte Concreta, eles acreditavam que poderiam finalmente validar seu trabalho como tendo significado e importância puramente por si só.
Lygia Pape - Sem título, 1959/1960, Xilogravura s/ papel japonês, 12 2/5 × 18 9/10 in, 31.5 × 48 cm, photo credits Arte 57, Sao Paulo
Confundindo Existência com Ciência
Entre Lygia Pape. Nascida em 1927 no Rio de Janeiro, Pape era uma jovem artista entusiasmada que se juntou ao emergente movimento de Arte Concreta Brasileira em seus primeiros dias, quando tinha apenas 20 anos. Mas, após apenas alguns anos, Pape e muitos de seus contemporâneos começaram a notar alguns problemas com a natureza puramente racional e mecânica da Arte Concreta Europeia. Eles sentiam que, de certa forma, isso também servia a uma agenda. Não servia a um partido político específico, nem a um ponto de vista social particular. Em vez disso, servia à agenda de estar completamente desconectado da vida pública. Não era não-narrativa. Em vez disso, tinha uma narrativa autoritária de neutralidade.
Então, em 1952, Pape e vários outros artistas, muitos dos quais eram alunos do artista e educador Ivan Serpa, formaram sua própria subcategoria da Arte Concreta chamada Grupo Frente. O nome fazia referência à sua opinião de que eram a verdadeira vanguarda brasileira. Eles adotaram a posição filosófica de que seguir cegamente as teorias existentes da Arte Concreta era um erro. Eles acreditavam que a existência era sensorial e pessoal, e que a experiência pessoal deveria ter tanto valor quanto as análises científicas em seu trabalho. Eles também abraçaram o valor da experimentação. Embora continuassem a fazer trabalhos abstratos que eram predominantemente geométricos, acreditavam que seu trabalho deveria ser expressivo e subjetivo, e, portanto, aberto à interpretação dos espectadores.
Lygia Pape - Grupo Frente Painting, 1954, Tempera on plywood, 15 7/10 × 15 7/10 × 1 2/5 in, 40 × 40 × 3.5 cm, photo credits Galeria Luisa Strina, São Paulo (Left) and Pintura (Grupo Frente), 1954-1956, Gouache sobre madeira, 15 7/10 × 15 7/10 in, 40 × 40 cm, photo credits Graça Brandão, Lisboa (Right)
A Ruptura
Do outro lado dessa posição filosófica estava outro grupo de artistas concretos brasileiros que se chamavam Ruptura, ou a Ruptura. Esses artistas abraçaram um tipo de arte puramente insensível, objetiva e não emocional, mais relacionado às origens europeias da Arte Concreta. Discussões ocorreram entre os membros desses dois grupos por anos, às vezes pessoalmente em exposições, outras vezes na imprensa. Mas, eventualmente, tornou-se óbvio que Ruptura detinha a vantagem filosófica quando se tratava de Arte Concreta, uma vez que suas origens eram de fato insensíveis e puramente objetivas.
Foi por causa disso que, em 1959, Lygia Pape e seus colegas fundaram o Movimento Neoconcreto e publicaram o Manifesto Neoconcreto. A essência da filosofia Neoconcreta era que os objetos de arte são seres independentes que são novos à existência, que não apenas ocupam espaço, mas também participam ativamente dele. Além disso, o significado e a relevância da arte não são totalmente conhecidos nem mesmo por aqueles que a criam. Portanto, é vital que os espectadores possam participar das obras de arte para que, através das interpretações individuais dos espectadores, a obra possa cumprir toda a sua gama de significados potenciais.
Lygia Pape - Livro da Criação (Book of Creation), 1959-60, Gouache and tempera on paperboard, 16-page popup book, 30.5 x 30.5 cm each, courtesy of the Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía
Relacionamentos no Espaço
Sob a bandeira do Movimento Neoconcreto, Lygia Pape criou obras de arte que permitiram aos membros do público experimentar a arte de uma maneira que nunca haviam feito antes. Uma das primeiras coisas que ela fez foi um "livro" pop-up de 16 páginas chamado Livro da Criação. Não era realmente um livro, mas sim 16 objetos geométricos abstratos separados pintados em cores primárias. Os objetos foram feitos para serem manuseados e manipulados pelos espectadores. Sua natureza cinética e participativa era revolucionária. A filosofia Neoconcreta se manifestava na capacidade que os espectadores tinham de interpretar as formas geométricas da maneira que escolhessem. Pape deu a cada "página" do livro seu próprio nome, que se relacionava a algum momento na história da vida, como a dominação do fogo, a agricultura ou a descoberta da navegação. Mas as formas e cores eram completamente abertas à interpretação. Pape disse que esperava que cada espectador, por meio de suas próprias experiências, abordasse o livro a partir de um ponto de vista "pelo qual cada estrutura pode gerar seu próprio significado."
Oito anos depois, em uma elucidação ainda mais clara da filosofia Neoconcreta, Paper fez uma de suas criações mais caprichosas: o Divisor. Um enorme pano de algodão branco no qual foram cortados vários buracos, a obra convidava os espectadores a “usá-la” colocando suas cabeças pelos buracos. Antes de ser “usada”, a peça era uma forma geométrica branca e sem sentido. Mas quando “usada” pelos espectadores, ela se tornava uma coisa viva. Conectava o público à arte de uma maneira literal e também os conectava entre si. A experiência visceral era poderosa, humorística e esteticamente fascinante, e as implicações filosóficas eram afirmadas de uma maneira lúdica.
Lygia Pape - Livro Noite e Dia, 1963-1976 Têmpera sobre madeira, 6 3/10 × 6 3/10 × 3/5 in, 16 × 16 × 1.5 cm, photo credits Graça Brandão, Lisboa
Um legado pioneiro
Seis anos após a publicação do Manifesto Neoconcreto, o Brasil novamente mergulhou em uma ditadura militar. Lygia Pape continuou a perseguir sua visão vanguardista e neoconcreta, mas seu trabalho a colocou em conflito com o governo muitas vezes. Ela chegou a ser presa e torturada por isso. O que seus inimigos não perceberam é que, ao reagir dessa forma ao seu trabalho, eles apenas validaram seu valor intrínseco e seu poder social e cultural.
Hoje, muitos de nós consideram como garantido que a arte abstrata tem o potencial de expressar as várias dualidades que enfrentamos, como entre nosso intelecto e nossa natureza animal, o que vemos e o que sentimos, e nossa existência física e a possibilidade do espírito. Lygia Pape foi uma das poucas artistas do século XX que viu esse potencial desde cedo. Ela tinha a sensibilidade artística para compreender a abertura inerente das formas geométricas e a humanidade para entender a necessidade de permanecer aberta. Essa combinação permitiu que ela criasse um legado que continua a inspirar artistas e espectadores hoje.
Imagem em destaque: Lygia Pape - Divisor, 1968, Tecido de algodão, buracos, 20m x 20m, © Projeto Lygia Pape
Todas as imagens © Projeto Lygia Pape, todas as imagens usadas apenas para fins ilustrativos.
Por Phillip Park